Impressões Digitais by Paulo Jorge Oliveira
O outro lado do amor
O outro lado do amor
Assinala-se hoje o Dia Mundial de Luta contra a Sida. Há 34 milhões de seropositivos no mundo. Em Portugal, serão mais de 40 mil pessoas vivem com o vírus e 60% dos casos de novas infecções referem-se a heterossexuais. Em Portugal o primeiro caso foi diagnosticado em Outubro de 1983. A Sida matou no ano passado cerca de dois milhões de pessoas em todo o mundo. Houve no entanto uma evolução na terapêutica. Há 30 anos os doentes tomavam mais de uma dúzia de comprimidos, hoje basta um por dia. Ainda assim, as pessoas continuam a ter comportamentos de risco e a fintar uma sorte que pode ser fatal em grande parte das vezes. A crise está a diminuir os apoios à prevenção e isso pode ser uma bola de neve perigosa e com efeitos nefastos. Hoje, em Impressões Digitais, republico um trabalho que fiz há 8 anos. Mara, uma jovem com tudo para viver... acabou por perder tudo em pouco tempo. Morreu em 2005. Este texto é em homenagem a Mara e, sobretudo, um alerta: A Sida existe e mata mesmo.
“Foi num dia de Dezembro e chovia torrencialmente sobre a capital”. Ainda hoje, Mara recorda com uma grande precisão o mais insignificante detalhe daquela tarde. Sabe perfeitamente como ia vestida, a cor das botas e da gabardina. Eram pretas, e era Natal. A tonalidade das nuvens que enchiam o céu, as palavras do taxista pelo caminho e o valor da gratificação que deu ao miúdo que tocava concertina à porta do hospital. Sabe de cor quantos degraus subiu, quantas vezes disse boa tarde às enfermeiras, quantos minutos esperou para ser consultada, quantas vezes os lábios vermelhos da médica lhe disse que lamentava profundamente.
Depois, há na memória de Mara, um buraco negro. Uma espécie de vazio enorme. Foi como se de repente a tivessem desligado do mundo, deste mundo “que pula e avança como uma bola num sonho de uma criança”. Estava num corredor comprido, cinzento e frio. Sozinha, muito sozinha com o papel que dizia “ser seropositiva” a tremer entre os dedos, a olhar para aquela espécie de condenação à morte sem data marcada. Sentiu um frio terrível a atravessar-lhe o corpo todo. Uma sensação de ausência, como se o seu corpo elegante de menina bonita deixasse de ser seu. A seguir só se lembra de estar num café, com um chá preto à frente. Não conseguiu chorar. Estava completamente seca por dentro que não havia lágrimas para derramar sobre o rosto.
Não sabe quantas horas passou no café com um chá preto à frente. Talvez muitas, Provavelmente só alguns minutos. Sabe que se encontrou com a serenidade para pensar no que lhe tinha acontecido e deixou correr, mentalmente, o filme da sua vida: reviu a sua infância feliz, dividida entre o Montijo e as férias na casa da madrinha, perto de Penacova; sintetizou as suas etapas escolares, da pré-primária ao curso de Economia deixado a meio, passando pelas aulas de canto e violoncelo no conservatório de Setúbal; relembrou os seus empregos temporários, à pastelaria da tia, no Montijo, ao restaurante na Moita absorvida de cheiros a fritos, ao escritório de contabilidade onde se sentiu em casa; mas sobretudo passou a pente fino a sua lista de namorados.
Deixou para trás os rapazitos de borbulhas que a cortejaram até aos 17 anos e concentrou-se nos que vieram depois, em todos aqueles com quem tinha dormido. Foram nove, talvez uns dez fazendo bem as contas, mas só com quatro fez amor sem preservativo: o Bernardo, um tipo mais velho 14 anos que trabalhava no escritório de contabilidade e se gabava de ter mais amantes do que o D. Juan; um dinamarquês de olhos cor de mar que conheceu no comboio quando atravessava o Algarve; o Miguel, o melhor amigo do irmão, com quem passou férias no Caramulo; e o Jorge, o seu namorado da altura. O homem que queria para pai dos dois filhos que combinaram ter.
Um deles fora o responsável pela transmissão do vírus. Saber qual não lhe serviria de nada, já não remediava a sentença de morte sem data marcada. Mara, mesmo assim, imaginou quantas pessoas haveria por detrás daquelas quatro com as quais teve relações sexuais sem protecção. Entrou em delírio. Fez as contas e imaginou uma rede imensa através do mundo. Milhares de pessoas contagiando-se umas às outras, milhares de pessoas a reservar um lugar para além desta vida, apertando o cerco até chegar a ela. Angustiada, Mara procurou o seu lugar e telefonou ao Jorge, a combinar um encontro.
Tinha um problema. Um grande dilema. Não sabia como lhe dizer que tinha Sida.
Tinha a cabeça a andar à roda e os olhos cor de mel a puxar para o salgado. Queria chorar, mas não haviam lágrimas. Tomou força e bebeu umas vodkas com e sem laranja no bar do costume. Entregou o corpo à música e à dança numa discoteca qualquer e desabafou tudo de uma só vez. Mara sabe que estava no carro dele, em frente ao Sado, quando lhe confessou toda a verdade. O Jorge ficou calado. Esteve alguns minutos assim, à procura das palavras certas. Encontrou-as quando lhe disse, quase a chorar, que tudo se havia de resolver. Solicitou à calma e lembrou-a que também tinha de fazer o exame. Jurou ali, à beira do Sado, que tudo seria enfrentado pelos dois, como sempre desde que ele pediu se podia namorar com ela. A Mara, precisava de ouvir aquilo. As palavras quentes do homem que seria o pai dos seus filhos deixou-a animada. Acreditou no amor. Acreditou que a fórmula verdadeira do amor a poderia salvar. Pediu-lhe ali um beijo, ele disse que não. Ela compreendeu e fez-lhe uma festa no rosto. Por momentos voltou a ser feliz.
No dia em que os resultados dos exames saíram, Mara acompanhou todos os passos de Jorge. Sentiu o nervosismo nos gestos dele, por isso contou-lhe anedotas e até leu as notícias do Correio da Manhã em voz alta, enquanto atravessaram o trânsito de Lisboa. Depois, voltou a subir os mesmos degraus e a desejar os mesmos “boas tardes” às mesmas enfermeiras. Esperou no mesmo corredor e ouviu as mesmas queixas. Sentiu o mesmo medo, a boca voltou a secar, as mãos tornaram a ficar húmidas. E se os mesmos lábios vermelhos da mesma médica voltassem a lamentar? Até que Jorge saiu, com um sorriso estampado no rosto.
Não acusara nada. Absolutamente nada. Mara ficou feliz pelo Jorge, mas no seu íntimo sentiu uma espécie de raiva. Uma raiva contra os outros três. O dinamarquês do comboio do Algarve; o Miguel, o melhor amigo de seu irmão, do Caramulo e do Bernardo, o D. Juan do escritório de contabilidade. Também sentiu raiva de si própria por ter sido tão estúpida. Ainda sentiu mais raiva por temer que Jorge fugisse. O namorado mexeu-lhe no cabelo e jurou que ficaria ao lado dela todo o tempo. Que tornariam a partir daquela altura todos os cuidados. Que se encontraria, mais tarde ou mais cedo, uma solução. Jorge levou Mara, nessa noite, a jantar fora. Um jantar romântico num restaurante caro. Um gesto de amor, para ela. Um alívio, para ele. Foi a última vez que Mara o viu.
Passados dois anos sobre os factos, ocorridos quando tinha 25 anos, Mara ainda sente as feridas da separação. Quando mais precisava de um apoio, ficou sozinha face ao abismo, desamparada. Durante umas semanas, pensou no suicídio e tentou-o por duas vezes, com comprimidos. Pensou em acabar a sua vida debaixo de um comboio. Não o fez. Não teve coragem. Depois reagiu, recompôs-se, voltou a encontrar pessoas, fez novos amigos, abriu alguns horizontes e tem mantido a doença sob controlo. Às vezes esforça-se para ser feliz mas não consegue. “Pesa ainda sobre mim a cobardia do homem a quem um dia entreguei o meu amor”. Uma história onde se vê como pode ser frágil o amor. Mara, morreu num dia de Inverno, em 2005. Com uma tuberculose, dizem os médicos.
Paulo Jorge Oliveira
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