Célia não percebia porquê mas ficava feliz. E facilmente se esquecia daquela mão grande e firme que não a largava nunca e a arrastava com força para todo o lado. Quando estava em casa pedia sempre para sair. Às vezes, fazia de conta que estava sozinha no meio da multidão. Divertia-a ver aquelas senhoras tão atrapalhadas a embrulhar tantos presentes. Mesmo que não fossem para ela. E os senhores parecidos com o avô a atender muita gente ao mesmo tempo. Sempre muito depressa.
Naqueles dias gelados só não gostava de ver o Pai Natal em todas as esquinas das ruas enfeitadas. Dentro das lojas para pegar os meninos ao colo. Alguns chegavam a chorar. Não tinha graça nenhuma. Célia nunca acreditou naqueles homens gordos de barba branca e todos vestidos de encarnado. Pareciam-lhe um bocado estúpidos e por isso não tinha medo. Uma vez conheceu um menino que se chamava Mário e que lhe deu um rebuçado e que também não acreditava no Pai Natal. Gostaram um do outro. Depois nunca mais se encontraram porque tiveram de se ir embora. Mesmo não querendo. Mas não faz mal. Ficaram amigos.
Num daqueles dias gelados, distraída com as luzes da cidade, Célia deixou de sentir aquela mão firme que a puxava com força para todo o lado. Agora era mesmo verdade. Assustada, levantou a mão direita mas ninguém a agarrou. Olhou em volta... nada. Com uma lágrima a querer mostrar-se no canto do olho - mas sem chorar - andou um pouco mais. Podia pedir ajuda. Mas não. Não estava perdida. Afinal já era crescida e sabia bem o caminho para casa. E ainda devia faltar muito para chegar toda a família para o jantar.
Como em todos os outros anos, Célia já tinha visto na cozinha o bacalhau numas panelas cheias de água. E saberia que haveria muitos doces. Sonhos, filhós, tronco e arroz doce de Natal.
Porque cheirava bem. Estava decidida. Ia ver as luzes só mais um bocadinho e depois então ia para casa. Não ia chorar. E assim podia ficar mais tempo a olhar para aquelas senhoras tão atrapalhadas a embrulhar tantos presentes. Porque era disso que mais gostava.
Sozinha, sentiu frio. Sem aquela mão firme a agarrar a sua, as ruas enfeitadas já não pareciam tão iluminadas. Não era a mesma coisa. Tudo ficava muito diferente. Chamaram-lhe a atenção um homem deitado, embrulhado num cobertor meio rasgado. Tinha um rádio na mão. Mas estava desligado. E tinha também um cão preto muito quieto. Parecia doente.
- Olá! Eu sou a Célia.
O homem não respondeu. Devia estar a dormir. Mesmo com o frio e com o barulho daquela música que parecia não ter fim. Ao lado do homem deitado no chão estava um menino loiro que a olhava fixamente. Sem parar. Mas não dizia nada. Estava descalço e até cheirava mal. Célia sabia que havia meninos que não iam ter prendas. Que nunca comiam bacalhau, nem sonhos nem filhós. Que nunca se sentavam com toda a família à volta de uma mesa naqueles dias gelados de Dezembro. Devia ser aquele.
- Olá! Eu sou a Célia.
O menino fugiu assustado. Não queria brincar. Ou então era muito envergonhado. Assim não podia ter mais um amigo como o Mário que não acreditava no Pai Natal. Naquela mesma artéria havia também uma senhora pequenina toda vestida de preto. Tinha uma mão estendida e pedia qualquer coisa às pessoas que passavam apressadas. Ninguém parava. Ninguém falava. Ninguém sequer olhava para aquela senhora toda vestida de preto.
- Olá! Eu sou a Célia.
A velhinha mandou-a embora com um grito rouco e brusco e virou costas. Não parou. Nem olhou. Sentado num degrau de pedra estava um rapaz com barba castanha e um casaco azul já estragado. Tinha a cabeça encostada. Parecia não estar a fazer nada.
- Olá! Eu sou a Célia.
O rapaz do casaco azul estragado olhou para baixo e disse uma palavra. Também não queria falar com ela. Era uma estranha. Aquelas eram as únicas pessoas que estavam ali. Paradas. As únicas que não corriam apressadas e pareciam ter tempo para conversar.
Mais ao longe, viu ainda uma menina a chorar. Estava também muito suja. Tinha uns sapatos rotos. Ninguém lhe ligava nenhuma. Se calhar por estar assim suja e despenteada. Às vezes a menina deitava-se mesmo ali. No chão. Mas logo voltava a levantar-se. Corria atrás de toda a aquela gente apressada. Aquela menina também não deveria receber prendas. E devia estar muito cansada. Célia, teve pena. Sentiu-se só. Com frio.
Já sem acreditar na vila iluminada, Célia voltou a sentir aquela mão firme que antes a agarrava com força. Sem uma palavra de repreensão. Ou carinho. Se calhar, não tinha ficado sozinha. Nem perdida. Nem longe. Nem por muito tempo. A lágrima que segurava no canto do olho caiu. Agora, já não lhe apetecia passear pelas ruas iluminadas da vila que voltou a parecer-lhe cinzenta. Afinal, não era tão bonita. Chorou. Baixinho. Naquele dia gelado de Dezembro, tinha vontade de contar uma história. Era triste. Mas podia começar como começam todas as histórias.
Era uma vez o Natal...
Paulo Jorge Oliveira
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