Estava à espera
Tinha vinte e dois anos e chamava-se Guida. Um filho de três que foi encontrado no berço roxo de gritar, depois de lá ter passado o dia inteiro, sem ela. Chamava pela mãe. Chamava, chamava e nada. A mãe tinha saído de madrugada deixando-o ali. Tinha fome. Tinha a fralda suja. Tinha medo. Ficou entregue ao colo dos avós e de um pai desconhecido. É mais um ADN do amor...
No trabalho, esperaram e esperaram por ela. Telefonaram e voltaram a telefonar. Nada. Chamaram-lhe nomes que ela não ouviu. Ficou o trabalho por fazer, amontoado numa secretária cheia de papéis, fotografias, contactos, canetas e recados.
O amigo íntimo mandou-lhe mensagens atrás de mensagens. Esperou. E nada. Fez o jantar, agarrou num livro e abriu uma garrafa de vinho verde que sabia que ela gostava. Deitou-se a pensar em toques, em mãos e em sexo. Assim passou o primeiro dia. No segundo, telefonaram para o hospital e para a polícia. Nada. No terceiro dia, começaram a fazer o seu trabalho, que não podia estar parado.
No quarto dia, o filho deixou de chamar por ela.
No quinto dia começaram a colocar a hipótese de estar morta.
No sexto dia telefonaram à sua mãe.
No sétimo dia começaram a contar aos amigos menos chegados.
No quinto dia começaram a colocar a hipótese de estar morta.
No sexto dia telefonaram à sua mãe.
No sétimo dia começaram a contar aos amigos menos chegados.
No oitavo dia o amigo íntimo abria garrafas de branco e fazia sexo com a melhor amiga dela.
No nono dia o tempo começou a correr sem ela.
No nono dia o tempo começou a correr sem ela.
Encontraram-na três semanas depois do seu desaparecimento, sentada no carro velho, de olhar fixo no mar, a ouvir a música de um filme de banda desenhada. Tinha os braços à voltas das pernas e o queixo, já deformado de receber lágrimas, encaixava nos joelhos, esquecido da altivez com que antes encarava os dias.
Não falava nem se mexia. Não tinha mudado de roupa. Cheirava a sal e a fumo.
Não falava nem se mexia. Não tinha mudado de roupa. Cheirava a sal e a fumo.
Estava à espera...
Estendeu o seu olhar pelas paredes, pelas ruas, pelos buracos das estradas que se espreguiçam num mar de plumas densas, brancas de passado. As memórias beijam a daquela cara outrora fresca, outrora muito bonita, numa carícia velada pelo marulhar do tempo, salgada pela imaginação. O miradouro caído num tempo, a árvore perto da estrada, as casas gradeadas... Determinado, busca nesses lugares o sabor verdadeiro das imagens presas pelo tempo, sem conseguir saborear mais do que esboços deturpados pela erosão da vida. Da vida que levava.
Como uma criança desolada, o Guida percorre a cidade, focando os mesmos sítios, sentindo os mesmos cheiros, suando com o mesmo calor, tentando desesperadamente sobrepor a imagem actual àquela que perdera. De nada serve, o cenário é o mesmo, mas faltam os actores. É escusado. É como retesar os músculos e não ter espaço para correr, como tomar balanço e não ter para onde mergulhar, como ensaiar uma carícia e receber um olhar frio em troca. Como gritar e perder a voz num infinito sem eco.
Todos esses sítios lhe devolvem o mesmo: nada. Só a imaginação lhes dá existência; só as memórias os cobrem de significados. E as memórias não são mais do que mosquitos vomitando zunidos insistentes numa espiral agoniada que se aproxima dos ouvidos e desperta o sentido das coisas.
As memórias chamam mais memórias. Malditas memórias que se lançam impetuosamente, entorpecendo-lhe o cérebro, bloqueando-lhe o pensamento. As memórias que transformam a realidade breve e volante num infinito distorcido. E esse infinito cose a verdade e a mentira; as palavras distantes soam fermentadas; os sorrisos lembrados mordem outros significados. É tudo distante e distorcido como o fundo de uma garrafa cheia de vinho branco do amigo com quem fazia sexo, tudo aumentado, modificado, quem sabe também imaginado. A noção da realidade perde-se num infinito de sentimentos velhos e memórias com amnésia.
Como um fantasma, Guida flutua até ao patamar conhecido. Andou por outras cidades. Procurou a sua vida. Ouve os cães a ladrar, tal e qual como era antes. Tem também no ouvido as gargalhadas e os fragmentos de conversas que já nem ele sabe se foram reais.
O suor escorre-lhe pela cara como fios de saudade. Arranja um sopro de coragem e toca à campainha. Uma carita espreita à porta, portadora da notícia dolorosa que murcha a réstia de esperança que vivia no seu peito. "Já não mora aqui. Não sei para onde foi". Desaparecera sem deixar rasto, como a sua própria vida, que ele também deixara escapar por entre os dedos.
A tristeza rasteja desapontada pela palidez da sua face. Afinal, o passado que o guiara até ali não era mais do que umas quantas recordações alinhavadas na louca esperança de voltar a encontrar tudo como antes. Ilusão fatal.
Impotente, passa a mão irada no cabelo preto desalinhado. A sua pele já não está tostada, a pronúncia cadenciada desapareceu, mas lá no fundo o coração pulsa ao mesmo ritmo das ondas do mar. Como se o sangue que lhe corre nas veias tivesse ficado contaminado pela textura da terra, pelo cheiro a maresia, pela luz das trovoadas retumbantes na escuridão.
Guida percebe isto tudo e muito mais. Percebe que já não pode voltar atrás, que não poderá nunca mais sentir o mesmo; que perdeu muito menos do que ganhou. E é ao escorrerem lentamente saudades de sentimentos bolorentos, numa despedida de um passado que não volta, que ela reconhece que é altura de voltar para casa.
Foi naquela praia – a saber a sal e a fumo – que Guida foi encontrada às 7 horas 32 minutos de uma segunda-feira de Fevereiro. Voltou ao filho de três anos e à casa dos pais. Voltou e lembrou-se que fora naquele carro velho, naquela praia que ela e o Nando tinham feito sexo, que dessa loucura sexual tinha nascido o seu filho. Voltou a casa dele... “já não mora aqui”... Guida queria dar um pai ao seu filho.
Paulo Jorge Oliveira
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