Pena Solta por Lia Santos


Um quadro e um olhar...

 No fim de um dia que parecia igual a tantos outros, à mesa do café de sempre...o fumo, o barulho, o calor e o mesmo quadro naquela parede já azul poente, algo me sorriu na minha mente...algo que me faz sentir bem, serena... Há lugares que são pequenos abrigos para onde podemos sempre fugir sem ninguém dar por isso. Da tarde tão fria há gente que chega e toma um café apressado para irem para os seus lares, e há os que entram com o olhar perdido á procura do futuro no avesso do passado ou apenas um silêncio de um sorriso...o tempo endurece qualquer armadura, mas às vezes custa arrancar as muralhas a volta do peito que nos afastam do mundo lá fora, e apenas vemos o escuro que incendeia as estrelas... Olho para a rua e olho as janelas, as ruas...mas é cá dentro que o calor conforta os sentidos.




Enquanto espero percorro os sinais do que sou, do que ainda resiste as marcas deixadas na alma e na pele do que foi feliz e do que foi triste neste dia...sabe bem voltar a ver o mundo, sinto um conforto quando olho para o passado, e sabe bem quando a minha alma está ao meu lado, porque muita gente perde a sua no passado. Quando o tempo me esvazia sabe bem o silêncio que me rodeia, e me dá asas a novas portas...e tudo o que a minha alma me dá rodeia o meu corpo. Consigo me sentir junto à tempestade sem me perder, vejo os rumos para caminhar no lado quente da saudade mas conheço o caminho de volta...só hoje senti que o rumo a seguir me levava pra longe daquilo que imaginava, senti que esse chão já não tinha espaço pra tudo o que foge. Não sei o motivo pra ir, só sei que não posso ficar... não sei o que vem a seguir, mas quero procurar ou já encontrei...
E hoje deixei de tentar erguer os planos de sempre, aqueles que são pra outro amanhã que há-de ser diferente...não quero levar o que dei, talvez nem sequer o que é meu... é que hoje parece bastar apenas este sossego que sinto em meu redor... só hoje esperei já sem desespero que a noite caísse e que nenhuma palavra me fosse dita... hoje foi diferente do que já se disse ou pensei... e há qualquer coisa a nascer bem fundo dentro de mim, e há uma força a vencer para qualquer outro fim...eu fui devagarinho ao encontro do meu pensamento e com medo de falhar sentei-me nesta mesa de café a deixar a minha mente apenas sonhar com o futuro...caso não seja esse o caminho certo para encontrar a paz que tanto anseio, vou encontra-lo certamente por sinais...vou descobrindo devagar cada sorriso teu...por entre sonhos e pensamentos  meus...eu fui vou chegando sem entender o porquê ou como, mas vou clarificando a minha mente...já foram tantas vezes tantas assim como esta vez...mas é mais fundo o teu olhar, mais do que eu sei dizer...é um abrigo pra voltar, ou um mar pra me perder...lá fora o vento nem sempre sabe a liberdade mas sente-se o cheiro da vida.

Finjo não saber, mas sei que na verdade o meu pensamento não foge ao vazio que demonstro ter em mim...enquanto brindo, danço e salto eu trago-te comigo...e sinto tanto, tanto a falta daquele livro que em pequena me ajudava a interpretar os sonhos...eu vou entrando pouco a pouco no meu silêncio, abri a porta da minha imaginação e vi que há lume aceso e um lugar pra mim que quase me assusta descobrir, sinto o sabor que a vida inteira procurei, entre a paixão e a dor ainda consigo sentir o vento na minha cara a esfriar o passado...não sou gente perdida mas balanço entre o sonho e a verdade, e guardo um abraço só para ti que não sei teu nome...eu sinto os meus passos na escuridão, pressinto o meu corpo no ar...e vou como se o mundo todo fosse sugado para dentro deste pressentimento, e não houvesse nada a fazer senão deixar-me ir...pressinto os meus gestos mesmo quando não estou onde penso...procuro os meus sonhos perdidos quando tento não tremer...e hoje mais que qualquer outra noite há qualquer coisa que me fere mas ao mesmo tempo que me dá balanço para a frente...parece um íman que me puxa sem nada mais querer...o que me faz estar tanto aqui não importa, porque às vezes tudo é breve como um sopro e passa...não importa se for uma gota só de loucura, que faça oscilar o meu mundo...interessa é saborear o momento que mesmo no silêncio me devora...e se o gesto cair que se desfaça a fronteira entre a lua e o sol. e se eu não souber recolher então que abra o meu céu para não se esconder...o que tu és que eu também sou. e se pudesse escrever mil e uma palavras, não saberia por onde começar...junto de mim instalaram-se várias cores e sentidos que não sei qual delas escolher... o meu olhar na sua cor revela esperança, e na minha estrada se eu pudesse apagava os passos do resto do mundo.
Faria uma estrada sem passos para que num instante ou num momento onde não me perde-se mais... hoje em dia as palavras são banais e quem as lê ou sabe ou para ela não passam de letras soltas...e no final deste dia mil e um pensamentos me sobrevoaram na cabeça e talvez tenhas encontrado mais uma certeza...ou não... levanto-me, e olho para o quadro naquela parede já azul poente e reparo que todos os meus pensamentos quando estou ali sentada navegam no barco lá desenhado...e sonho ou não é com ele que eles começam a ganhar vida e forma na sua plenitude... no fundo do quadro está uma personagem que não lhe consigo ver o rosto, está sentado no pontão a olhar pro barco...e eu a cada dia estou mais perto de descobrir as suas feições e o seu cheiro para me poder sentar ao seu lado... nesse dia ele vai me sorrir e será o meu porto de abrigo que um dia já não preciso fugir mais...e vou ter na minha direcção o silêncio de um sorriso...


Lia Santos
Lisboa 

(Lia Santos escreve todas as quartas-feiras a rubrica Pena Solta, pensamentos da alma)  

Consulte todos os artigos da autora clicando aqui: 

Comentários

Enviar um comentário