Amor para os que prescindem dele
Quais são as leis de civismo dos desamparados? Até 10
de Fevereiro, o Teatro D. Maria II, em Lisboa, abrigará a escumalha que mais
ninguém quis numa sátira encenada por João Mota.
Condomínio da Rua em cena no Dona Maria II, em Lisboa |
Eles emergem do lixo sem rumo nem porquês. Outrora gente, estas criaturas
de pouca coerência são os inquilinos da rua, sem-abrigo, ora humanizados ora
não, que marcam o seu território em palco e revelam a falta de arte e engenho
da condição humana. Uma peça escrita por Nuno Costa Santos que João Mota encena
para ilustrar uma crítica social do país: “O sem-abrigo de agora pode ser
qualquer de nós.”
Embora partilhem o mesmo tecto, os seis protagonistas que formam o elenco
são figurados com características distintas e incompatíveis, de forma a
personificar as diversas caricaturas de uma sociedade decadente.
Este espelho social, que varia entre o cómico e o trágico, esconde-se nos
gestos das personagens mas não foge à mensagem de descontentamento nem às
diversas causas que desabrigaram os protagonistas. “Ninguém tratou nem cuidou
deles, mas ninguém quer falar sobre isso”, contesta o encenador. “Se as medidas
que enfrentamos continuarem, teremos mais sem-abrigo.”
Apresenta-se um lar desfeito, com um prostituto, um esquizofrénico, uma
alcoólica, uma toxicodependente e um veterano da guerra colonial – reúnem-se
para celebrar a demência em todas as suas vertentes. O sexto elemento é uma
forasteira que se sujeita às ruas voluntariamente, recebida pelos demais como
se tudo fosse um rito de passagem.
Dar uma voz ao estatuto do
sem-abrigo
Existe em palco um elo entre homem e animal. São criaturas que apresentam
instintos primitivos mas a cultivar autoconsciência sobre as suas próprias
acções. Aqui as filosofias de vida são baratas e servidas em pequenas doses,
tal como o vinho de mesa que vão dividindo. No entanto, é só isso que os
sustenta.
Os residentes encontram conforto no interior do seu próprio desarranjo
mental. O caos semeia-se numa cena de improvisação em que se tenta implementar
um código de civismo semelhante ao de um condomínio de classe média, mas no
meio de um inescapável ambiente regido pela desordem e pela pobreza.
O objectivo de Nuno é dar uma voz transcendente ao estatuto do sem-abrigo
comum, sem nunca se separar das óbvias limitações. Para tal, teve de se aventurar
nas ruas lisboetas com as equipas da organização de solidariedade Comunidade
Vida e Paz. “Foi doloroso porque se trata de um confronto de perto com uma
realidade que tendemos a esquecer diariamente.”
O elenco residente do Teatro D. Maria II contou também com a consultoria do
psiquiatra Daniel Sampaio, nem por isso estranho ao mundo do teatro. O autor da
peça “Vagabundos entre Nós” deu a oportunidade aos diversos actores de
presenciar interacções com alguns dos seus pacientes com esquizofrenia.
A investigação resultou numa crítica simultânea à introspecção da
consciência humana e ao estado social do país, interpretada por João Grosso,
José Neves, Lúcia Maria, Manuel Coelho, Maria Amélia Matta e Paula Moura, na
Sala Garrett.
Agência de Notícias
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